sábado, 14 de junho de 2025

Calendário Tupi Contemporâneo do Inhapuambuçu - Por Luiz Pagano

 
Calendário Anual Tupi Contemporâneo

Tudo começou com esta pergunta:

"Como seria o Brasil se a cultura dos Tupis tivesse sobressaido à dos Portugueses?" 

Na virada do ano 2000, eu fazia ilustrações para a revista Superinteressante, mais precisamente para a seção "Superfantástico", na qual se perguntava "e se..." (eu ilustrei "e se pudéssemos nos teletranportar" (ed 175 de Maio de 2002) e "e se os gregos não tivessem existido"). E isso me fez perguntar: "E se a cultura tupi tivesse suplantado a cultura portuguesa?". Como seria o Brasil?

Com base nessa pergunta fiz a postágem de 2012 (saiba mais) que me fez criar uma nova corrente de pensamento, a Nova Tupi e uma artistica a Tupi Pop.

A partir dessa pergunta também, decidi fazer um Calendário Tupis Contemporâneo, tendo como base os povos Tupis da região central de São Paulo, do Inhapumbuçu de Tibiriça e João Ramalho e os Tupinambas que conviveram com Jean de Léry. Mas também pode ser útil para os Potiguaras de Felipe Camarão, bem como para todos os Tupis de outras partes do Brasil, onde a celebração da cultura ancestral missigenada do brasileiro comum é valorizada.

Talvez o dia mais importante deste calendário fosse o Dia de Mani e da mandioca, 22 de abril, porque utiliza nosso alimento mais significativo, a mandioca, como base para a celebração. Ou talvez o Dia do Mbaraka, a personificação do ser vivo com o espírito que ressoa na cabaça. O fato é que teriamos festas em várias datas do ano.

.-.-.-.-.

Antes de prosseguirmos, dois Avisos Importantes são necessários:

Aviso Importante 1

Não temos a intenção de minimizar ou caricaturar nenhuma cultura. Pelo contrário: queremos celebrar a ancestralidade indígena que pulsa em grande parte do povo brasileiro. A maioria de nós carrega no sangue e na alma a herança de povos originários. Honrar essa raiz é reconhecer que somos, em essência, indígenas também — herdeiros de um Brasil que existia muito antes da colonização. Esta celebração é um convite à memória, à valorização e ao respeito profundo às culturas que moldaram o que somos. Que o espírito de alegria seja, sempre, acompanhado de consciência e reverência --- Somos todos indígenas.

Aviso Importante 2

O termo "tupiniquim" aparece com frequência na literatura francesa, aprendido com os Tupinambás, inimigos dos Tupis, (significa algo como o pequeno Tupi, ou falso Tupi, usado pelos primos Tupinambá para reduzi-los) e é evitado aqui, devido à sua conotação pejorativa e colonial.

Isso posto...

O Calendário da Tartaruga

Uma das teorias mais ouvidas entre nossas muitas etnias diz respeito ao fato de o ciclo anual de 364 dias estar gravado nas carapaças das tartaruga marinhas da família Cheloniidae, diz a lenda que Jerônimo de Albuquerque Maranhão, bravo guerreiro, responsável pela expulsão dos franceses, filho do nobre português Jerônimo de Albuquerque e da linda princesa indígena pernambucana Muyrã Ubi, filha do cacique Uirá Ubi, (Arco Verde, em português), da aldeia Tindara, batizada em língua portuguesa com o nome de Maria do Espírito Santo Arcoverde, ao chegar em Pé do Serrote fez erguer uma pequena fortaleza, com estacas de madeira para protegerem-se do terrível pirata francês Du Prat, no ano de 1614 de nosso Sr., na companhia dos Tremembé.


Como era profundo conhecedor do idioma Tupi, aproximou-se de uma jovem que brincava com uma tartaruga marinha e percebeu que ela constantemente repetia um verso: 

“kwara'sï - Irundyk po xe pó mosapyr - quatro mãos com minha mão e mais três = 28 (vinte e oito sois), Îasy - Mokõî pó mosapyr – duas mãos e mais três = 13 (treze luas)”;

13 luas e 28 dias, o que seria isso?

Ao perguntar ao pai da garota, esse responde que em todas as carapaças de tartaruga esses números equivalem aos 364 dias que compõem o ano indígena.

Todos os povos indígenas conheciam a sabedoria da tartaruga e seguiram um calendário de 13 meses; afinal, existem 13 ciclos lunares num ano e 27 a 29 dias por ciclo.

Ao comparar com o calendário gregoriano, instituído em 1582, fez parecer que o homem branco tivesse subtraído um mês para cortar a conexão entre as pessoas com o sol e a lua."

O velho índio perguntou então a Jerônimo:

O ano de 364 dias está representado na carapaça da tartaruga marinha

O-î-kuab-ype nde r-a'yra îurukaûá asé r-ekomonhangaba? 

Teu filho desconhece os mandamentos da tartaruga feito a nós?

Envergonhado, ele mente ao velho índio: 

- Pá. O-î-kuab.

Sim, ele os conhece.

Ta nde ma'enduar Tupã asé r-ekomonhangaba r-esé.

Que ele se lembre dos mandamentos da tartaruga feito a nós.

Os Dias mais impotantes do Calendáriuo Tupi

Obviamente, este calendário não é seguido integralmente pela nossa sociedade; trata-se de um calendário "Novo Tupi", ou seja, o calendário de um Brasil alternativo, mais Tupi e menos Português. Vejamos as principais datas:

07 de Fevereiro – Dia de Sepé Tiaraju

No dia 2 de fevereiro, os povos do Brasil profundo celebram Sepé Tiaraju, líder guerreiro e espiritual do povo Guarani, morto em 1756 na luta contra o avanço colonial sobre as Missões Jesuíticas no Sul do país. Embora fosse Guarani, os Tupis e outros povos indígenas celebram suas vitórias como parte de uma luta comum: a defesa da terra, da vida e da liberdade nativa.

Em uma São Paulo ficcional criada por mim, o centro antigo, região do triângulo histórico do Inhapuambuçu, tem estátuas em estilo Art Déco dos 12 indígenas célebres: Tibiriça, Cunhambebe, Caramuru, Felipe Camarão... e entre eles Sepe Taiaraju, aqui retratado em uma propaganda fictícia do Cauim Tiakau da década de 1960.

Sepé não é apenas um personagem da história — é símbolo vivo de resistência, de comunhão com a terra e da dignidade indígena diante da invasão europeia. Foi ele quem disse, antes de cair, a frase que ecoa até hoje:

"Esta terra tem dono!"
(Co ivi oguerecó iara)

No Calendário Tupi Contemporâneo, o dia 2 de fevereiro é reconhecido como:

“Ara Reroky” — o dia em que a terra canta com seus defensores.

Busto de Tibiriça e Potira no centro histórico de São Paulo. Numa São Paulo fictícia criada por mim, o centro antigo, região do triângulo histórico de Inhapuambuçu, possui estátuas em estilo Art Déco dos 12 ancestrais indigenas famosos.

Mesmo entre os Tupis, que viveram em outras regiões do Brasil, Sepé é celebrado como um parente espiritual. Sua causa era a mesma: preservar a terra dos antigos, as florestas, os rios, o alimento sagrado, e os modos de vida que respeitam o espírito de tudo o que vive.

15 de Março – Guerra do Caju – Datas Móveis

Lembrança das antigas guerras rituais entre os Tupis, marcadas pela temporada do caju. Hoje, uma data simbólica de disputa saudável, celebração e respeito às diferenças.

Entre os tupis, o tempo não era preso a números, mas aos sinais da natureza. Assim, quando os cajueiros frutificavam em fartura, era tempo de festa – e também de disputa.

Todos os anos, nos meses de agosto a janeiro, os Aimorés, Tremembés e Goitacás e outros indígenas da etnia Jê, invadiam  as terras litorâneas, de onde foram expulsos no passado, para entrar em conflito com os Caetes, Tupinaba e outras etnias do tronco Tupi-Guarani - motivo ? - O Caju! - ilustração de Luiz Pagano para a enciclopédia virtual Indigenas em Toy Art (saiba mais)

Entre os tupis, a beligerância era parte integrante da cultura – cercada de muita selvageria, ritualização e antropofagia. Isso pode soar bárbaro aos olhos de hoje, e de fato seria inaceitável sob os parâmetros éticos contemporâneos. Mas para os povos originários, a guerra era um eixo simbólico da vida, uma forma de relação com o outro, com o cosmo e com a natureza.

Hoje, a memória desses ritos pode – e deve – ser ressignificada, transformando-se em jogos simbólicos, disputas entre “cariocas” (descendentes dos Tupinambás) e “paulistas” (mais próximos dos antigos Tupis).



Podemos imaginar tais embates como olimpíadas culturais, marcadas pelo respeito às diferenças e pela celebração de nossas raízes comuns.

As chamadas “Guerras do Caju” são emblemáticas. Aconteciam entre os meses de agosto e janeiro, quando o fruto fermentava ainda na árvore – presente dos deuses, segundo os mitos. Sem necessidade de preparo ritual como o cauim, o caju se tornava símbolo de fartura e, paradoxalmente, de conflito.

Essas guerras eram planejadas com antecedência, envolvendo assembleias de guerreiros adultos, preparo de farinha, construção de canoas e consultas ao pajé. As mulheres desempenhavam papel vital na logística e apoio emocional dos guerreiros. Em campo, os “roncadores” tocavam a inúbia – oboé ancestral – para instigar o espírito bélico.

Thevet descreve a cena com riqueza:

“Seguem as esposas a seus maridos na guerra [...] para carregar os alimentos, cuidar deles e transportar outras munições. Partem para longas guerras, lançando fogo às suas palhoças e ocultando na terra os bens mais preciosos.”

A guerra era vista como um ciclo de renovação, de reafirmação da identidade e da valentia. Hans Staden fala de cercos que duravam semanas. Anchieta menciona expedições com até 48 canoas e 500 guerreiros.

Já a “Guerra da Pesca”, especialmente na época da piracema, repetia esse ciclo de forma aquática. Aldeias invadiam simbolicamente os rios dos vizinhos para capturar peixes – sobretudo a tainha – como parte de rituais que terminavam em banquetes e trocas culturais.

Diputas de "Guerra do Cajú" Nos dias de Hoje

Mesmo reconhecendo que a beligerância era uma parte integrante da cultura tupi ancestral, é evidente que nos dias de hoje as práticas ancestrais seriam inaceitáveis.  --- No entanto, a memória desse período pode ser ressignificada por meio de celebrações simbólicas de paz, harmonia e boa vizinhança. 

A ideia de uma disputa simbólica entre paulistas (tupis) e cariocas (tupinambás) pode se manifestar como uma olimpíada indígena moderna, com jogos como cabo de guerra, corridas com os pés amarrados e provas de resistência inspiradas nos costumes antigos, nas quais a celebração é mais importante do que a competição em si. 

Ao final, uma grande festa no espírito do carnaval, encerraria a celebração, com fantasias, danças ao som de maracás e muita fartura — com pratos à base de peixe, caju e cauim servido em grandes cuias compartilhadas.

22 de Abril – Dia de Mani e da Mandioca

Data para honrar a lenda da deusa Mani, que ao morrer deu origem à mandioca — alimento sagrado para os povos originários.

Deusa Mani e a Capivara - Quadro com moldura de Pau-Brasil

Mani, a deusa albina dos tupis, morreu ainda menina, mas de seu corpo enterrado na oca, brotou a mandioca, alimento sagrado de toda a América do Sul. 

Existem várias historias sobre a lenda de Mani, a que mais gosto diz que Mani era uma jovem indígena albina, de beleza sobrenatural e sabedoria que transcendia sua idade. Tão perfeita, que despertava admiração — e também inveja.

Luto pela morte da Deusa Mani - as lágrimas de sua mãe regaram a santidade de seu espírito e fizeram nascer a primeira planta de mandioca.

Foi injustamente acusada, e morta. Sua mãe, devastada, a enterrou dentro da oca (como é costume dos Tupis) e chorou dias inteiros sobre o túmulo. De suas lágrimas de amor nasceu o primeiro pé de mandioca, a planta sagrada que alimenta os povos originários até hoje.

Resolvi ilustrar Mani como símbolo da vida que renasce da dor, do alimento que brota da espiritualidade. Na imagem, ela carrega uma capivara, guardiã silenciosa dos rios urbanos, já que o calendário é para os dias atuais.

A capivara é a força da natureza que nos visita em meio ao caos das cidades (vide  "Capivara Parade" ) para nos lembrar que podemos ter sustentabilidade nos centros urbanos, como embaixadoras da natureza nas grandes cidades, pois, ao se ver elas chegando para nadar nos poluídos rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo, ou na poluída Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, nos mostram que nos comportamos mal.

Ela é a personificação do Brasil não contaminado. A resposta feminina e ancestral à brutalidade do mundo moderno.

Canto a Mani – A Força Sagrada do Cauim

Pergaminho do Canto à Deusa Mani - Em uma adaptação completa aos dias atuais (já que os antigos povos indígenas nem sequer escreviam, confiando apenas na tradição oral para transmitir seus conhecimentos), o pergaminho é pendurado nas paredes como uma lembrança.

A bebida fermentada de mandioca dos tupis ganhou um canto/oração/poema especial do amigo e estudioso do tupi antigo, Ariel, tal como segue:

Mani omanõ yby resé toîkó 
oré 'anga rembi'urãmamo.

Mandi'oka asé reté oîopóî; 
kaûĩ asé 'anga oîopóî.

"Mani morreu da vida terrena para virar alimento espiritual do nosso povo."
"A mandioca alimenta o corpo e o cauim alimenta o espírito."

Inspirado no paralelismo e rituais budistas como o sambo (altar de oferendas), adotado aqui no Brasil por meio da transplantação religiosa, decidi criar um rito adaptado ao contexto urbano atual brasileiro (veja mais adiante). 

Desde que comecei a desenvolver o Cauim Tiakau, (saiba mais)  esse projeto de trazer para os dias atuais o cauim que era feito no Inhapuambuçu, região central de São Paulo, a partir do antigo triângulo geomântico no meio dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, esse universo tem estado tão ricamente presente em minha mente que até passei a culturar a Deusa Mani. 

A exemplo de uso, a frase "Aîinhetamong Mani Rese" pode ser traduzida como "Façamos uma oferenda para a Grande Mani".

Todos esses ritos, ainda que contemporâneo, buscam respeitar a essência ancestral da prática, criando pontes entre o passado e o presente, entre o sagrado indígena e a vida urbana moderna — sem descaracterizar sua força espiritual.

E assim, aos poucos, rituais de celebração e respeito aos ancestrais vão surgindo, ou ressurgindo, nessa nova cultura que renasce. Não como uma cópia do passado, mas como um tributo vivo, sensível e consciente àquilo que nunca deixou de existir.

17 de Julho – Dia do Anhangá

Aqui em São Paulo podemos celebrar o protetor das matas, o Anhangá, entidade que vela pelos animais, pela floresta e pelo equilíbrio da natureza no Vale do Anhangabaú.

Anhangá não é um demônio, como a catequese tentou nos convencer. É uma entidade ancestral, implacável sim, más também um espírito guardião dos animais, um senhor dos encantos da mata. 

Anhangá, Capivara e Tamanduá no tringulo menor do Inhapuambuçu, dentro do grande tringulo do Pico do Jaraguá, arte de Luiz Pagano

Ainda é uma festa para bem poucos (eu e alguns amigos, rsrs)  já que Cauim ainda é muito escasso e poucos conhecem a lenda do Anhangá, mas estamos crescendo.

Toy Anhangá - planta crescendo entre as rachaduras do cimento, vida que surge em meio à urbanização desordenada.

Como vocês devem saber, no local onde hoje está localizado o Páteo do Collégio, próximo ao povoado de Tibiriçá, existia uma montanha sagrada que deu nome à vila, Inhapuambuçu (do tupi antigo i(nh)apu'ãm-busú o grande cume ou y (nh)apu'ãm-busú a grande ponta do rio), mas com a chegada das Ordens Beneditinas, Carmelitas e Franciscanas, as tradições ancestrais dos Tupis desapareceram.

O triângulo menor formado pelo morro Inhapuambuçu na confluência dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, estava dentro do triângulo maior na confluência dos rios Pinheiros e Tietê com vista para os guardiões do vale, o Pico do Jaraguá.

Imagem fictícia da celebração do Dia de Anhangá no Vale do Anhangabaú. Eu já omemoro esta data há muito tempo, convidando os amigos para beberem Cauim Tiakau cauim no Pátio do Colégio. Quem sabe algum dia esta festa não se torna uma celebração de verdade?

O Anhangá é comumente retratado como um veado campeiro branco, de tamanho atroz, com olhos vermelhos da cor do fogo. Ele é o protetor da natureza e persegue todos aqueles que caçam indiscriminadamente, desrespeita a natureza e pune aqueles que caçam filhotes ou mães que estão criando seus filhotes e poluindo suas águas (Anahngá anda tendo muito rabalho por aqui...).


O vale do Rio Anhangabaú ainda é um lugar sagrado, os antigos habitantes de Piratininga realizavam cerimônias religiosas e festivais para tornar o deus menos vingativo. Hoje, não apenas afogamos o Rio Anhangá (o canalizamos), como também esquecemos o espírito principal da nossa cidade. Desconsiderar nossas tradições tupis dessa forma é um pecado imperdoável e merece o castigo implacável deste deus temido pelos tupis e colonizadores.

03 de Agosto – Festival da Lua Cheia



Festa da Oitava Lua
(Yacy e Guaracy — O Encontro das Luzes)

A Festa da Oitava Lua é uma celebração Tupi com data móvel, marcada pela primeira lua cheia de agosto — considerada a oitava lua do ciclo anual.

Ela celebra o reencontro simbólico entre Iaci (a lua) e Guaraci (o sol), irmãos divinos que, segundo a lenda, se amavam mas só podiam se ver brevemente no entardecer.

Nesse dia, o cauim é compartilhado sob a luz da lua cheia, acompanhado de cantos, danças e oferendas simples com mandioca, mel e flores, em agradecimento à natureza e aos ciclos da vida.

É um momento de renovação, união e luz — quando o céu reflete o equilíbrio entre o dia e a noite, o sonho e a vigília.

12 de Outubro – Dia do Cauim Contemporâneo

No mesmo dia em que o Brasil celebra Nossa Senhora Aparecida, padroeira do país, também se celebra — neste calendário que nasce do coração e da mandioca — o Dia do Cauim Contemporâneo, a bebida sagrada dos povos Tupi.

Nas fotos - Casa de hóspedes Pernod Ricard em Resende, próximo ao Santuário de Aparecida, em 12 de outubro de 2015 - A primeira fermentação, bebendo em cuia no Projeto Tembiu, e meu etúdio de pintura adaptado para funcionar como um laboratório de fermentação o qual dava o nome de 'Blemya'.

Neste dia, recorda-se o momento em que, em 12 de outubro de 2015, em Resende, Rio de Janeiro, os primeiros sinais da fermentação perfeita, após quebra de amido com koji cedida por Hikaru e orientado por colegas da Pernod Ricard, apareceram em um mini dispositivo de fermentação. 

Mas, como ensinam os anciãos indígenas:

“Aquilo que acontece na terra, já aconteceu antes no plano espiritual.”

Essa fermentação não começou naquele dispositivo improvisado — começou no sonho. No desejo de resgatar o cauim como bebida viva, como ponte entre mundos, como elo entre passado e futuro.

O Milagre da Fermentação

Para realizar minhas experiências iniciais com fermentações, desenvolvi dois dispositivos a partir de cafeteiras térmicas. O primeiro funcionava como um sistema de aquecimento e resfriamento (chiller), usando a circulação de água quente ou gelada, e conta com um termômetro digital para monitorar a temperatura. Com ele, conseguia controlar as variações térmicas necessárias para que o koji atuasse na mandioca.

Aqui coloco juntos os dispositivos portáteis para experimentos com fermentação de mandioca: 1- "chiller": um refriador ativado por uma bomba de aquário que faz circular água previamente aquecida ou resfriada, colocada em 2- caldeira sob a câmara térmica por meio de serpentinas. Ao lado, um pequeno 3- tanque de fermentação com torneira baixa e tampa com "air-lock". Abaixo da imágem vemos um refratômetro - apesar de serem comuns na indústria de vinhos e cervejas para monitorar o processo fermentativo, os refratômetros ainda são pouco usados por produtores caseiros, no entanot, são essenciais para a produção do cauim. Sem ele, não poderíamos saber se a mandioca atingiu o dulçor suficiente para que a fermentação alcoólica ocorra (acima de 20 brix).

O segundo dispositivo era uma cuba de fermentação com airlock, que permitia fermentar de forma segura e controlada.

Foto tirada durante o processo de aquecimento das pérolas de mandioca inoculadas com koji, com exceção dessas cubas, sempre procurei utilizar ao máximo peças indígenas, como esta ugassaba Waurá.

A grande vantagem desses dispositivos é que são compactos e cabem no porta-malas do carro, o que me permite fazer experimentos em qualquer lugar. Com eles, consigo tanto promover a quebra do amido da mandioca quanto realizar a fermentação.

Após o sucesso alcançado em Rezende com a quebra do amido, transformação do açúcar e consequente fermentação da mandioca, continuei os experimentos no meu etúdio/laboratório chamado Blemya, a seguir vemos um pequeno altar — o Ietamemuã, uma estrutura simbólica para os maracás —, um Tembi Tarara, painel que descreve as oito fases do cauim em tupi antigo, e um Tykueryru, peça inspirada na tradição japonesa do sugidama (bola de cedro), usada para avisar à comunidade sobre a produção do cauim e minhas anotações no livro com arte Yekwana na capa.

Arte, Espiritualidade e Ciência

Além de um trabalho de pesquisa científica sobre fermentação, meu estudo sobre o cauim em 2015 envolvia dois aspectos fundamentais: a arte como instrumento de aculturação e o respeito às tradições e espiritualidade dos povos indígenas. 

Área de pesquisas e experimentos do laboratório/estúdio/templo - Blemya - O cauim é a manifestação mais pura do Movimento Nova Tupi e da arte Tupi Pop, expressões desenvolvidas como forma de reconectar a ancestralidade e a contemporaneidade de um Brasil alternativo que não vivemos (ainda). Mais do que uma bebida ritual, o cauim, no meu processo criativo, se torna o principal elemento de aculturação, um símbolo vivo — uma fusão entre ciência, arte e espiritualidade indígena, que resgata e cultiva conhecimentos ancestrais da cultura braasileira.

Nesse processo, desenvolvi uma instalação artística com orientação de membros da comunidade indígena, composta por um pequeno altar — o Ietamemuã, uma estrutura simbólica para os maracás —, um Tembi Tarara, painel que descreve as oito fases do cauim em tupi antigo, e um Tykueryru, peça inspirada na tradição japonesa do sugidama (bola de cedro), usada para avisar à comunidade sobre a produção do cauim. 

Primeiras inoculações de pérolas de mandioca com koji kin. Como usei koji de saquê nos primeiros experimentos, tive que separar os grãos de arroz dos esporos de Aspergylus e ajustar a temperatura e a umidade em cada experimento por tentativa e erro ate obter bons resultados.

Além disso, realizei intervenções artísticas nas peças de laboratório, integrando pintura, rituais e experimentação, como forma de dar corpo a uma prática viva, que une ciência, arte e ancestralidade.
Nas fotos - Paulo Wassu-Cocal abençoando o projeto Cauim Tiakau, brindando com o Cacique Juarez Saw Munduruku o lançamento do filme Amazônia Sociedade Anônima, sendo recepcionado pelos espíritos da floresta e drink com guaraná ralado na língua de pirarucu.

O processo contou com o olhar técnico e fraterno de profissionais incríveis, e, em especial, com a contribuição decisiva de Hikaru Sakunaga, que trouxe consigo a chave da quebra amilítica, fundamental para transformar o amido da mandioca em açúcar fermentável.

A ela, aos funcionários da fábrica de Resende, indigenas das etnias Wassu-Cocal, Potiguara, Guarani Mbya, Guajajara, Mundurukus e a todos os que se somaram nesse caminho — meus mais profundos agradecimentos.

Uma das primeras fermentações obtidas

Também agradeço aos aliados do plano espiritual indígena, que guiam este projeto com firmeza silenciosa. São espíritos ancestrais, encantados das florestas, guardiões da mandioca, da saliva ritual, do fogo cerimonial e da festa comunitária.

Depois de 2018, a cada fermentação que fizemos, aperfeiçoamos o processo, tanto o método enzimático (desenvolvido por Hildo Sena), quanto o método japonês (desenvolvido por Luiz Pagano).

O cauim não é só uma bebida — é memória líquida, é vínculo social - é alimento da alma.

Que se faça Tradição

Que 12 de outubro seja reconhecido, no calendário da Nova Tupi, como o Dia do Cauim Tiakau — dia de celebrar o renascimento da bebida sagrada, feita 100% de mandioca, símbolo da fartura, da resistência e da brasilidade indígena.

Neste dia, que se abram potes de barro, que se acendam fogueiras, que se compartilhem histórias e goles.

01 de Novembro – Dia de Tupã a Força que Destrói para Renovar

Se Mani representa o aspecto feminino da natureza — aquele que dá vida, nutre e transforma com suavidade — Tupã é sua contraparte masculina: a força avassaladora do trovão, que destrói para abrir espaço ao novo.

Pai Tupã - A força masculina do trovão, que destrói para abrir espaço ao novo, erronemanete associado a Deus da tradição Judaico Cristã.

Nos antigos saberes tupi, Tupã não era “Deus” no sentido ocidental monoteísta, mas sim uma entidade sagrada, o mensageiro de Nhanderuvuçu  — uma entre muitas que regem as forças da natureza e do espírito. No sincretismo colonial, no entanto, ele foi erroneamente identificado como o "Deus supremo" dos indígenas, muito por conta da necessidade dos missionários de enquadrar os sistemas de crença ameríndios dentro de uma teologia cristã. Assim, Tupã acabou sendo tratado como equivalente ao Deus único europeu — o que distorce profundamente o pensamento tupi, que é mais próximo do budismo ou do xintoísmo: plural, cósmico, ritualístico, centrado em relações com múltiplas entidades espirituais.

No Japão, seres compassivos e iluminados são chamados de Bosatsu (菩薩), aqueles que escolhem ajudar os outros antes de atingir o nirvana. A noção tupi mais próxima desse conceito pode ser chamada de Tupinheñang, termo que poderíamos cunhar para designar os espíritos que vivem para harmonizar, ensinar e cuidar do mundo — como Mani e os grandes anciões das aldeias espirituais.

Na sua cosmologia pessoal, o 1º de novembro é o dia de Tupã, marcado pela transição entre o fim dos ciclos e o nascimento do novo. O primeiro dia de novembro foi dado a Tupã pelos jesuítas, dia de todos os santos,  para que os indígenas, agora catequizados, pudessem celebrar aquele que se sincretizaria com Deus Pai Todo-Poderoso, não é por acaso que essa data ecoa tradições antigas que celebram os mortos, os espíritos e as mudanças de estação.

Se os tupinambás marcavam em 12 de dezembro o auge da luz (quando o dia começa a ser maior que a noite), então 1º de novembro está exatamente no período de renovação e preparação, o momento onde a destruição — provocada por tempestades, ventos e trovões — purifica a terra para que ela volte a florescer.

Assim como Mani é semente e broto, Tupã é raio e cinza fértil.

02 de Novembro - Dia do Saci

Mais maduros seríamos… se o Finados fosse do Saci.

Infelizmente não temos maturidade cultural para comemorar o dia do Saci, preferimos importar o Halloween - pintura de Luiz Pagano, Saci e Cuca em meio a muirakitãns coloridos.

Em vez de importarmos o Halloween, com suas abóboras sorridentes e monstros de plástico, talvez fôssemos uma nação mais madura espiritualmente e culturalmente se celebrássemos, no feriado de Finados (2 de novembro), o nosso Dia do Saci.

Afinal, quem melhor que o Saci para mediar a passagem entre o mundo dos vivos e o dos encantados?

O Saci — travesso, sábio, invisível — é o espírito que ri da morte e sopra sabedoria por entre as brasas do fogão e os redemoinhos do mato.

O Exemplo dos Nossos Irmãos Mexicas

No México, o Día de los Muertos é uma celebração de reconexão com os ancestrais. Não é um culto ao medo, mas sim à memória viva. É uma tradição com raízes profundas no tzompantli, o altar cerimonial dos povos maia e mexica, onde se honravam os crânios dos que partiram — não por morbidez, mas por reverência à continuidade da vida.

Infelizmente, aqui no Brasil, preferimos comemorar o Halloween no Dia de Finados, mas no México eles parecem ser mais maduros em festejar suas próprias tradições, o "Dia de los Muertos" tem a sua própria festa. Eu adoraria ver o Brasil fazer o mesmo, até mesmo com o Dia do Saci. - Foto: Abel Gutierrez

Enquanto o Halloween exporta sustos e consumo, o Día de los Muertos oferece flores, comida, música, caveiras sorridentes e afeto familiar. Uma festa da ancestralidade.

Na cosmologia afro-brasileira e indígena, figuras como o Saci, o Curupira e a Cuca não são monstros — são entidades da floresta, do tempo e do saber. Celebrá-los no Finados seria aceitar que a morte não é o fim, e que o encantamento é parte da vida.

O Saci é aquele que some com seus pertences, mas também devolve sua conexão com o invisível. Ele é a lembrança de que o Brasil tem mitologia própria, humor próprio, espiritualidade própria.

Imagine um 2 de novembro em que montamos altares com redemoinhos de pano, colocamos pipocas, fumo e milho torrado para os sacis e contamos histórias em volta do fogo.

Não para ter medo, mas para celebrar os que nos precederam, rir de nossos próprios mistérios e reconhecer os encantados que ainda caminham conosco.

Mais do que copiar, o Brasil pode reinterpretar. - Mais do que consumir, podemos comemorar com raiz.

12 de Dezembro — Dia em que o Sol Vence as Trevas

Meu tio-avô dizia que os Tupis também observavam com atenção os ciclos solares, mencionava que, em 12 de dezembro, dia do aniversário de algum parente meu do passado, o Sol amanhecia mais cedo do que nos outros dias se punha mais tarde, ou seja, havia mais luz do que escuridão.

Esse dado é fascinante, pois coincide de forma próxima com o solstício de verão no hemisfério sul, que ocorre por volta de 21 de dezembro. Isso mostra uma percepção refinada dos ciclos astronômicos por parte dos Tupis.

Léry descreve o maracá (ou maraca) como um instrumento ritualístico central na religiosidade dos Tupinambás. Ele era feito de uma cabaça seca com sementes dentro, preso a um cabo — e não era apenas musical: era considerado vivo e sagrado.“Ils appellent ce petit instrument leur dieu”. (“Eles chamam este pequeno instrumento de seu deus”)
— Jean de Léry, Capítulo XV.

Acabaça representa o corpo físico e os grãos a alama - a vida é representada pelo barulho que eles fazem quando o maracá está em agitação.

Quando os tupis chegavam à casa de um musaka, chefe de família ou homem importante na aldeia, eles fincavam o seu mbaraka no chão e ofereciam comida e bebida para passar a noite.

Desde 2015, mantenho um rito pessoal e sagrado dentro de casa, mesmo morando em apartamento, encontrei um modo de fincar o maracá — não na terra ancestral, mas em uma base de madeira com terra viva dentro, símbolo do elo com o chão original.

Chamo essa peça de Ietamemuã, que une duas ideias em tupi antigo:

Ietamongaba – oferenda e Karamemuã – caixa, receptáculo sagrado. 

Nele coloco o meu maracá pintado por mim e coroado de penas urbanas e de papagaio, um pouco de cauim contemporâneo, pérolas de mandioca (sagú), mandioca ou milho plantados, como símbolos da vida que brota da terra e às vezes acendo uma vela para representar a luz do solstício.

Meu mbaraka, colocado num ietamemunhã, com oferta de cauim num quaich escocês, um vaso com mudas de milho "avati" ou mandioca, a acendo uma vela para celebrar o dia de luz.

Diante dele, falo:

xe py'atytyka îabi'õ 
nde rausub agûama ri a'ar
'ara xe rekobesaba îabi'õ 
nde ri xe morerekûar agûama ri 

Endé ka’aeté rerekokatúrememo
Ka’aeté abé nde rerekokatúmo
 
Tradução

xe py'atytyka îabi'õ - a cada batida do meu coração.

Nde rausub agûama ri - para amar você 
a'ar - eu nasci.

'ara xe rekobesaba îabi'õ - a cada dia (que é) a hora do meu viver = a cada dia da minha vida.

nde ri xe morerekûar agûama ri - para você ser meu guardião ( morerekoara = o que cuida de, guardião; adjetivo morerekoar (xe) ser cuidado por.

---

Eu nasci para te amar a cada batida do meu coração.
Eu nasci para você cuidar de mim a cada dia da minha vida.
quando você cuida da floresta, a floresta também cuida de você.

Apendice - As Constelações Tupi

Parte integrante do calendário é a observação do céu e suas estrelas, os indigenas brasileiros davam muita importância às constelações localizadas na Via Láctea, que podiam ser constituídas de estrelas individuais e de nebulosas, principalmente as escuras. A Via Láctea é chamada de Caminho da Anta (Tapi’i rapé, em guarani) pela maioria das etnias dos indigenas brasileiros, devido principalmente às constelações representando uma Anta (Tapi’i, em guarani) que nela se localizam.

A Constelação da Ema

A Constelação da Ema - YANDUTIN

Em relação à constelação da Ema, d’Abbeville relatou: “Os Tupinambá conhecem uma constelação denominada Iandutim, ou Avestruz Branca, formada de estrelas muito grandes e brilhantes, algumas das quais

representam um bico. Dizem os maranhenses que ela procura devorar duas outras estrelas que lhes estão juntas e às quais denominam uirá-upiá”. Ele chamou de Avestruz Branca a constelação da Ema, no entanto, a avestruz (Struthio Camelus Australis) não é uma ave brasileira. A ema parece com a avestruz, mas é menor e de família diferente.

Na segunda quinzena de junho, quando a Ema (Guirá Nhandu, em guarani) surge totalmente ao anoitecer, no lado leste, indica o início do inverno para os indigenas do sul do Brasil e o início da estação seca para os indigenas do norte do Brasil.

A constelação da Ema fica na região do céu limitada pelas constelações ocidentais Crux e Scorpius. Ela é formada utilizando, também, estrelas das constelações Musca, Centaurus, Triangulum Australe, Ara, Telescopium, Lupus e Circinus.

A cabeça da Ema é formada pelas estrelas que envolvem o Saco de Carvão, uma nebulosa escura que fica perto da estrela α Crucis (Acrux). O bico da Ema é formado pelas estrelas α Muscae e β Muscae. A Ema tenta devorar dois ovos de pássaro (Guirá-Rupiá, em guarani) que ficam perto de seu bico. Os ovos são as estrelas δ Muscae e γ Muscae.

As estrelas α Centauri (Rigel Kentaurus) e β Centauri estão dentro do pescoço da Ema. Elas representam dois ovos que a Ema acabou de engolir.

A parte de baixo do corpo da Ema começa a ser formada pela estrela β Trianguli Australis, passando pelas estrelas η Arae, ζ Arae e ε1 Arae e pelas estrelas ζ Scorpii, µ1 Scorpii, ε Scorpii, τ Scorpii, α Scorpii (Antares) e σ Scorpii, terminando em δ Scorpii.

Uma das pernas da Ema é formada pelas estrelas da cauda de Scorpius, começando na estrela δ Scorpii e termina nos dedos do pé representados pelas estrelas υ Scorpii (Lesath), λ Scorpii (Shaula) e SAO 209318. A outra perna começa na estrela ε1 Arae, passa pela estrela α Arae e termina nos dedos do pé formado pelas estrelas α Telescopii, ε Telescopii e ζ Telescopii.

A cauda da Ema é formada pelas estrelas δ Scorpii, β1 Scorpii (Graffias), ω1 Scorpii, ω2 Scorpii e ν Scorpii, todas da garra de Scorpius.

A parte de cima do corpo da Ema, é formada pelas estrelas δ Scorpii, π Scorpii e ρ Scorpii também da garra de Scorpius, seguida pelas estrelas χ Lupi, γ Lupi, ε Lupi, κ Lupi e ζ Lupi, terminando na estrela β Circini, onde começa o seu pescoço.

Dentro do corpo da Ema, as manchas claras e escuras da Via Láctea ajudam a visualizar a plumagem da Ema.

A constelação Scorpius, excluindo suas garras e as estrelas que estão acima de Antares, representa uma Cobra (Mboi, em Guarani) para os íindigenas brasileiros, sendo Antares a sua cabeça. De fato, é muito mais fácil imaginar uma cobra que um escorpião nessa região do céu.

Ao Sul do Trópico de Capricórnio, a constelação ocidental Scorpius é conhecida como de inverno e perto da Linha do Equador como de seca, tendo em vista que ela pode ser observada, ao anoitecer, nessas estações. 

Essa constelação, sem as garras, representa um cobra para os indigenas brasileiros.

A Constelação do Homem Velho

A Constelação do Homem Velho - TUYAVAÉ

Em relação à constelação do Homem Velho, d’Abbeville relatou: “Tuivaé, Homem Velho, é como chamam outra constelação formada de muitas estrelas, semelhante a um homem velho pegando um bastão”.

 Na segunda quinzena de dezembro, quando o Homem Velho (Tuya, em guarani) surge totalmente ao anoitecer, no lado Leste, indica o início do verão para os indigenas do sul do Brasil e o início da estação chuvosa para os indigenas do norte do Brasil.

A constelação do Homem Velho é formada pelas constelações ocidentais Taurus e Orion.

Conta o mito que essa constelação representa um homem cuja esposa estava interessada no seu irmão. Para ficar com o cunhado, a esposa matou o marido, cortando-lhe a perna. Os deuses ficaram com pena do marido e o transformaram em uma constelação.

A constelação do Homem Velho contém três outras constelações indígenas, cujos nomes em guarani são: Eixu (as Pleiades), Tapi’i rainhykã (as Hyades, incluindo Aldebaran) e Joykexo (O Cinturão de Orion).

Eixu significa ninho de abelhas. Essa constelação marca o início de ano, quando surge pela primeira vez no lado oeste, antes do nascer do Sol (nascer helíaco das Plêiades), na primeira quinzena de junho. Segundo d’Abbeville, os Tupinambá conheciam muito bem o aglomerado estelar das Plêiades e o denominavam Eixu (Vespeiro). Quando elas apareciam afirmavam que as chuvas iam chegar, como chegavam, efetivamente, poucos dias depois. Como a constelação Eixu aparecia alguns dias antes das chuvas e desaparecia no fim para tornar a reaparecer em igual época, eles reconheciam perfeitamente o intervalo de tempo decorrido de um ano a outro.

Tapi’i rainhykã significa a queixada da anta e anunciava que as chuvas estavam chegando, para os Tupinambá. Joykexo representa uma linda mulher, símbolo da fertilidade, servindo como orientação geográfica, pois essa constelação nasce no ponto cardeal leste e se põe no ponto cardeal oeste Joykexo também representa o caminho dos mortos.

A cabeça do Homem Velho é formada pelas estrelas do aglomerado estelar Hyades em cuja direção se encontra α Tauri (Aldebaran), a estrela mais brilhante da constelação Taurus.

Acima da cabeça do Homem Velho fica o aglomerado estelar das Plêiades que representa um penacho que ele tem amarrado à sua cabeça.

O pescoço do Homem Velho começa em Aldebaran e termina na estrela ο2 Orionis, de onde partem seus braços.

Um de seus braços termina em ζ Tauri. O outro braço termina em π6 Orionis, passando por todo o escudo de Orion.

A linha reta que vai de π5 Orionis até β Orionis (Rigel), representa um bastão que o Homem Velho utiliza para se equilibrar.

A estrela γ Orionis (Bellatrix) fica na virilha do Homem Velho, sendo que a estrela vermelha α Orionis (Beltegeuse) representa o lugar em que sua perna foi cortada. O Cinturão de Órion (Três Marias) formado pelas estrelas δ Orionis (Mintaka), ε Orionis (Alnilam) e ζ Orionis (Alnitak) representa o joelho da perna sadia. A estrela κ Orionis (Saiph) representa o pé da perna sadia.

Ao Sul do Trópico de Capricórnio, a constelação ocidental Orion é conhecida como constelação de verão e perto da Linha do Equador como de chuva, tendo em vista que ela pode ser observada, ao anoitecer, nessas estações.

Constelação da Anta do Norte

Constelação da Anta do Norte - TAPI'I

A constelação da Anta do Norte é conhecida principalmente pelas etnias brasileiras que habitam na região norte do Brasil, tendo em vista que para as etnias da região sul ela fica muito próxima da linha do horizonte. Ela fica totalmente na Via Láctea, que participa muito nas definições de seu contorno, fornecendo uma imagem impressionante dessa constelação. 

Existem outras constelações representando uma Anta (Tapi’i, em guarani) na Via Láctea, por isso chamamos essa constelação de Anta do Norte.

Segundo Afonso (2006), os indígenas brasileiros, dão maior importância, àquelas constelações quehabitam a Via Láctea, ou Tapi’i’rapé, a Via Láctea é chamada de Caminho da Anta devido, principalmente, à  constelação da Anta do Norte.

Na segunda quinzena de setembro, a Anta do Norte surge ao anoitecer, no lado Leste, indica uma estação de transição entre o frio e calor para os indigenas do sul do Brasil e entre a seca e a chuva para os indigenas do norte do Brasil.

A constelação da Anta do Norte fica na região do céu limitada pelas constelações ocidentais Cygnus (Cisne) e Cassiopeia (Cassiopéia). Ela é

formada utilizando, também, estrelas da constelação Lacerta (Lagarta), Cepheus (Cefeu) e Andromeda (Andrômeda).

A estrela α Cygni (Deneb) representa o focinho da Anta do Norte, sendo que 55 Cygni, ξ Cygni e 59 Cygni representam sua boca. O restante da cabeça é formado pelas estrelas 74 Cygni, σ Cygni, ν Cygni, 56 Cygni, 63 Cygni e π2 Cygni.

As estrelas τ Cygni e 72 Cygni representam as orelhas da Anta do Norte.

A parte de cima do pescoço começa em SAO 51904 (2 Lacertae) e a parte de baixo em ζ Cephei.

A parte de baixo do corpo da Anta do Norte começa a ser formada pela estrela ζ Cephei, passando pelas estrelas β Cassiopeiae (Caph) e α Cassiopeiae (Schedar), terminando em ζ Cassiopeiae.

As duas pernas da frente começam em ζ Cephei, sendo que uma delas termina em α Cephei (Alderamin) e a outra termina ι Cephei. As duas pernas de trás começam em β Cassiopeiae (Caph), sendo que uma delas termina em κ Cassiopeiae e a outra em δ Cassiopeiae (Ruchbah).

A cauda da Anta do Norte é representada pelas estrelas ζ Cassiopeiae e µ Cassiopeiae.

A parte de cima do corpo da Anta do Norte é formada pelas estrelas ζ Cassiopeiae, ψ Andromedae e λ Andromedae, terminando na estrela SAO 51904, onde começa o seu pescoço.

A Constelação do Veado

A Constelação do Veado - SYGÛASU

A constelação do Veado é conhecida principalmente pelas etnias de indigenas brasileiros que habitam na região sul do Brasil, tendo em vista que para as etnias da região norte ela fica muito próxima da linha do horizonte.

Na segunda quinzena de março, o Veado surge ao anoitecer, no lado Leste, indica uma estação de transição entre o calor e o frio para os indigenas do sul do Brasil e entre a chuva e a seca para os indigenas do norte do Brasil.

A constelação do Veado fica na região do céu limitada pelas constelações ocidentais Vela (Vela) e Crux (Cruzeiro do Sul). Ela é formada utilizando, também, estrelas da constelação Carina (Carina) e Centaurus (Centauro).

A estrela γ Velorum (Suhail Al Muhlif) representa o focinho do Veado, sendo que sua cabeça é formada pelas estrelas SAO220138, SAO 220803, λ Velorum (Alsuhail), SAO 220371 e SAO 220204.

Partindo da estrela λ Velorum até as estrelas ψ Velorum e SAO 200163, temos os dois chifres do Veado.

 A parte de cima do pescoço começa em κ Velorum e vai até SAO 220803, a parte de baixo começa em δ Velorum e vai até SAO 220138.

A parte de baixo do corpo do Veado começa a ser formada pela estrela δ Velorum, passando pelas estrelas ι Carinae (Aspidiske), SAO 250683, θ Carinae, η Crucis, ζ Crucis, α Crucis e ε Crucis, terminando em δ Crucis.

A cauda do Veado é representada pelas estrelas δ Crucis, β Crucis e γ Crucis. A parte traseira do Veado é formada por todas as estrelas da constelação Crux.

As duas pernas da frente começam em SAO 250683 e θ Carinae sendo que uma delas passa por υ Carinae, terminando em β Carinae (Miaplacidus) e a outra termina em ω Carinae. As duas pernas de trás começam em η Crucis e ζ Crucis sendo que uma delas passa por λ Muscae e ε Muscae, terminando em γ Muscae e a outra passa por α Muscae e β Muscae, terminando em δ Muscae.

A parte de cima do corpo do Veado é formada pelas estrelas γ Crucis, π Centauri e φ Velorum, terminando na estrela κ Velorum, onde começa o seu pescoço.

Referências Bibliográficas


BRANDÃO, Carlos Rodrigues. "Os Guarani: índios do Sul – religião, resistência e adaptação."

BUENO, Eduardo. "Brasil: uma História." São Paulo: Ática, 2002.

BUENO, Eduardo. "Capitães do Brasil – A Saga dos Primeiros Colonizadores." Coleção Terra Brasilis. Objetiva, 1999.

CLASTRES, Pierre. "A Sociedade Contra o Estado," p. 48.

FIGUEIRA, José Joaquín. "Breviario de Etnología y Arqueología del Uruguay."

GALVÃO, R.. "Arte Tremembé." Fortaleza: SEBRAE-CE.

KEEGAN, John. (2006). Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras.

KEELEY, Lawrence H. (1996) War Before Civilization. New York: Oxford University Press.

KOK, Glória. "Descalços, violentos e famintos." Dossiê Bandeirantes in Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 34. pp.23 a 24.

MONTEIRO, John. "Bandeiras Mestiças." Dossiê Bandeirantes in Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 34. pp.17 a 21.

NEVES, Erivaldo Fagundes. "Guerra aos Tapuias." Dossiê Bandeirantes in Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 34. p.35.

NEUMANN, Eduardo Santos. "Vale o escrito." Dossiê Jesuítas in Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, nº 81, p. 19.

PERUSSET, Macarena; Rosso, Cintia N. Guerra. "Canibalismo y Venganza Colonial: Los Casos Mocoví y Guaraní."

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. "Sertão mineiro loteado à força." Dossiê Bandeirantes in Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 34. p.37.

PAUCKE, Florian. Hacia allá y para cá. Ministerio de Innovación y Cultura de la
Provincia de Santa Fe, 2010.

SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. "Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o diretório pombalino." Campinas: Unicamp, 2003.

SILVA, Reginaldo Miranda da. "Piauí de paulista." Dossiê Bandeirantes in Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº 34. p.36.

STADEM, Hans. "Duas Viagens ao Brasil."

Web:

Dialetico – "Tapuias"
Jornal A União – "A origem siberiana dos Tarairus."
Olimpiadas Nacionales de Contenidos Educativos en Internet – "La cultura Guaraní: ¿Un Paraíso Terrenal?"
Villarrica, seção Folklore – "Los Guaraníes"
Povos Indígenas no Brasil – "Tupiniquim," "Potiguara," "Tremembé"
Blog Família Naves – "Cidade de São Paulo (458 anos), Berço da família Naves no Brasil"
IBGE, Brasil 500 – "Os números da população indígena."

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Um Espaço de Cultura e Cauim dentro da Aldeia Indígena


Imagine como seria legal se tivéssemos aldeias indígenas que optassem por sediar uma unidade de produção de cauim contemporâneo em suas próprias instalações?!

A ideia é simples, mas poderosa: criar um espaço onde a cultura material ancestral se entrelace com a hospitalidade, proporcionando a visitantes uma imersão completa na tradição e história de cada povo.

Numa situação imaginária vemos mestres Cauineiros de etnias optantes colocando mosto no tanque de fermentação, com a evolução social nas aldeias, o cauim comercial, diferentemente do cauim ritualístico, pode ser feito por homens. Infewlizmente essa é uma imagem aspiracional - quem sabe um dia veremos essa e outras censa como essa nas aldeias.

Essas unidades poderiam contar com instalações para acolher turistas, compartilhar a história da etnia, apresentar pratos típicos e utilizar o cauim contemporâneo como instrumento para entabular o diálogo cultural. É importante destacar que o cauim contemporâneo não substitui nem invade o espaço do cauim ritualístico, que permanece sagrado e parte de uma tradição espiritual imaterial que respeitamos profundamente.

Em um trabalho multidisciplinar, envolvendo várias culturas, observamos que quando colocamos o cauim dentro de uma garrafa de cerâmica Marajoara de Icoaraci, uma linda formação de cristais esbranquiçados aparece e se espalha majestosamente pela lateral da garrafa.

Ao tornar-se optante, a aldeia receberia todo o know-how técnico da equipe do Cauim Tiakau para montar sua unidade de produção. Não oferecemos apoio financeiro direto, pois a marca ainda está em fase inicial e também busca recursos para promover essa nova categoria de bebida no mercado. Entretanto, colocamos à disposição nosso conhecimento, dedicação e rede de apoio para viabilizar juntos essa iniciativa.

O modelo de produção é simples e acessível: uma dorna de fermentação de no mínimo 100 litros, uma panela de cocção adequada para bebidas fermentadas e um sistema de resfriamento (chiller). O custo médio é de pouco mais de R$ 50.000 – um investimento que pode ser parcialmente revertido com a venda de garrafas de cauim produzidas em cerâmica artesanal local, dentro de uma lógica de lixo zero e baixa emissão ambiental, que ainda pode gerar créditos de carbono.

Nesta cena, vemos uma Cauim Apó Sará — uma das mulheres responsáveis pela produção do Cauim — realizando sua reverência à deusa Mani antes do preparo do Cauim Contemporâneo, num Kaûĩ Apoha (unidade produtora de cauim) de uma aldeia.Trata-se de uma imagem fictícia que representa simbolicamente o templo e os diversos elementos que surgiram ao longo da redescoberta do Cauim nos tempos atuais.No canto superior direito, observamos o Tembi Tarara, o estandarte do Cauim, com seus nichos que representam os sete (ou oito) passos da produção. Ao lado, há um pergaminho com a oração a Mani e, logo à frente vemos pendurado um Tykueryru, ainda sem os tradicionais galhos de pitanga.No chão, ao pé de uma planta de mandioca, estão Maracás cerimoniais enterrados, acompanhados de oferendas, feitas pelos trabalhadores, em honra aos ancestrais e ao espírito da bebida.

Este projeto não visaria transformar um símbolo espiritual em simples mercadoria. Pelo contrário: acreditamos que o cauim pode se tornar um símbolo de resistência cultural e de geração de renda, respeitando os saberes ancestrais e valorizando o que é próprio e sagrado de cada povo. Muitas aldeias hoje sofrem com a perda de áreas de caça, a poluição dos rios, a grilagem e a presença de madeireiros ilegais. E em algumas, a venda de um simples artesanato é tudo o que garante a próxima refeição.

O Surgimento de Uma nova Etapa Cultural

Sim, estamos testemunhando o surgimento de uma nova fase de nossa civilização — um movimento que desponta de forma espontânea, com profundo respeito às tradições e a colaboração ativa das etnias optantes. É como adentrar, ainda com a água nos joelhos, um vasto e promissor oceano cultural, repleto de belezas e oportunidades que apenas começamos a descobrir.

Na sala de crescimento do Koji, técnico conduz o processo de Sabẽ mbeîu moe’ẽ ( o esporo torna o beiju sápido)

Ao longo desse trabalho ainda em fase experimental, muitas vezes ficamos surpresos e admirados com o que nos surge, como novas expressões culturais espontâneas e novas peças simbólicas.

Nesses últimos 20 anos observamos a formação de 'cristais de cauim' que se formam do lado de fora das garrafas de cerâmica, uma peça nova foi criada a partir de um tipiti com galhos de pitanga, uma peça prática que tem o propósito de indicar o grau de amadurecimento do cauim produzido, carinhosamente chamado por um descendente dos Potiguara de Tykueryru, o mesmo o Tembi Tarara, um estandarte com a representação dos oito passos do processo de produção em Tupi Antigo*. 

A esquerda o Tembi tarara, estandarte do cauim com nichos, representando os sete (ou oito) passos para a produção do Cauim no processo tradicional, e o Tykueryru pendurado na frente de uma Kaûĩ apoha (fabrica de Cauim) para avisar o grau de matiridade da bebida. - No sentido horario temos : 1 - Aîpi Kytĩ-ana (descascar a mandioca) , 2 - Ungûá pupé o-îo sok (pilar e ralar a mandioca) , 3 - Tepiti pupé a’e t-y amĩ-î (passar no tipiti) , 4 Mopopur (ferver) , 5 - Aîpi o- su'u su’u I nomu (mastigar e cuspir) , 6 - Haguino (fermentação) , 7 - Mboaruru & Kaura (filtração e clarificação) e 8 - Tîaka-une (vamos beber).

O cauim contemporâneo pode representar um futuro próspero e possível, no qual tradição e inovação caminham lado a lado. Se a sua aldeia quiser abraçar esse caminho, estamos prontos para caminhar juntos.

Quem sabe o próximo item na cultura emergente pode vir de sua iniciativa?

----

*Escolhemos adotar o Tupi Antigo como idioma base do processo de produção de cauim por encontrarmos estes nos texto antigos de Lery, Stadem e Anchieta, bem como por ser a língua indígena mais falada antes da proibição do Marquês de Pombal e por ainda estar presente em diversas toponímias e identidades culturais do Brasil. 

Cada etnia optante, no entanto, é livre para traduzir e adaptar esse processo ao seu próprio idioma e contexto. 

Cauim e Ancestralidade

Este artigo é a continuação de um post que escrevi em 2012 neste memso blog, no qual perguntei "como seria o Brasil se a cultura Tupi tivesse superado a cultura portuguesa?" (saiba mais).

Essa pergunta me ocorreu no início dos anos 2000, quando eu ilustrava para a revista Superinteressante, mais precisamente para a seção "Superfantástico", na qual perguntavam "e se..." (Ilustrei "e se pudéssemos nos teletransportar" - edição 175, maio de 2002 e "e se os gregos nunca tivessem existido" edição 175 do mesmo ano).

Essas perguntas me fizeram ciriar o movimento Nova Tupi e o estilo artistico Tupi Pop.

Quando comecei a fazer experiências com o cauim, minha intenção era puramente técnica. Queria desenvolver métodos contemporâneos de produção, explorar a bebida de maneira moderna, sem comprometer seu valor espiritual. Ao meu ver, o cauim dos tempos atuais não precisava — nem deveria — tentar se igualar ao cauim ritualístico ancestral, que merece respeito como algo maior do que uma simples bebida.

No entanto, ao longo do processo, percebi que não seria possível dissociar completamente o cauim de suas raízes sagradas, tal como o sake que é amplamente utilizado nos rituais budistas e xintoístas, o cauim é uma bebida intimamente ligada a espiritualidade brasileira.

Desde o início do projeto, envolvi representantes de diferentes etnias — especialmente Wassu Cocal, Potiguara, Guajajara, Yek'wana e Guarani Mbya — para me orientar tanto na tradução dos métodos para o tupi antigo quanto nas nuances culturais ligadas à bebida. E todos, sem exceção, foram unânimes: o cauim não pode ser separado de sua matriz espiritual.

Utensílios para preparo e degustação de cauim, pote de esporos, frascos e livro com receitas de ugaçaba

Como faço o denominado Cauim do Inhapuambuçu (o cauim dos meus ancestrais da antiga São Paulo de Tibiriçá, anterior a 1500 d.C. ), assumi essa linhagem significava também assumir a responsabilidade espiritual que a acompanha. 

E a questão que surgiu foi: como podemos honrar essa dimensão sagrada de forma verdadeira e respeitosa, dado que o último povo Tupi de São Paulo nos deixou há cerca de 400 anos e os outros se miscigenaram com os atuais 'Paulistanos'?

Para ser bem franco, deixo esta parte para os representantes religiosos das aldeias optantes consagrarem a produção de cauim conforme seus rituais condizentes, a fim de homenagear a Deusa Mani, seus ancestrais e outras entidades pertinentes. Mas, em relação aos meus ancestrais de Inhappuambucu, minha abordagem será diferente.

Deusa Mani e a Capivara - Quadro com moldura de Pau-Brasil. "Em minhas ilustrações Mani sempre aparece com uma capivara, pois além de criador desta história em quadrinhos, eu também fui o criador da Capivara Parade, baseado no movimento artístico Cow Parade".As capivaras são embaixadoras da natureza nos centros urbanos, pois, ao chegar para nadar nos poluídos rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo, ou na poluída Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, elas nos mostram que é possível ter sustentabilidade nas cidades brasileiras.

Primeiro no Plano Espiritual, Depois na Terra

Como prova de que os acontecimentos que me levariam ao surgimento do cauim contemporâneo aconteceram primeiro no mundo espiritual e depois como projeção tomaram forma na Terra (como me foi dito por praticamente todos os representantes de todas as etnias com quem conversei), recebi, como gesto de amizade e confiança, um maracá e uma bela acangatara (cocar) com penas de papagaio, de membros da etnia Wassu Cocal.

Por sugestão deles, comecei a decorá-lo com penas de passaros da cidade, posto que a aldeia de Inhapuambuçu fica num dos maiores centros urbanos do mundo, num gesto simbólico dessa ponte entre os tempos, incluindo uma de um pequeno gavião que avistei perto do Parque da Aclimação, bem próximo da casa onde nasci, na Rua Dom Duarte Leopoldo, cuja pena encontrei logo após vê-lo perseguindo um sabiá, e que se tornou a pena principal do meu maracá.

Como o maracá é meu, e somente meu, e tem espírito próprio, segundo sua espiritualidade originária, decorei-o e pintei-o como quis, num ato de proximidade, admiração e respeito.

Pergaminho do Canto à Deusa Mani - Em uma adaptação completa aos dias atuais (já que os antigos povos indígenas nem sequer escreviam, confiando apenas na tradição oral para transmitir seus conhecimentos), o pergaminho é pendurado nas paredes como uma lembrança.

Canto a Mani

O amigo Ariel, estudioso do tupi antigo, escreveu uma canção de louvor a Mani — a entidade associada à origem da mandioca — que costumo cantar antes de cada produção de cauim:

Mani omanõ yby resé toîkó 
oré 'anga rembi'urãmamo.

Mandi'oka asé reté oîopóî; 
kaûĩ asé 'anga oîopóî.

Tradução

‘Mani morreu da vida terrena para virar alimento espiritual do nosso povo’

‘A mandioca alimenta o corpo 
e o Cauim alimenta o espírito’

Glossario em Tupi Antigo

Mani - Deusa Mani da mandioca;
manõ - morte, morrer;
yby - Terra, mundo;
embi-u - (ou emiú) -(t) (s) comida;
asé - a gente; nós (universal);
angá - espírito, alma (eco, sombra);
eté -(t) (s) corpo;
kaûĩ - Cauim;
poî - (îo) almientar, dar de comer;

Transplantação Tupi: Entre o Espiritual e o Cultural

Assim como iniciei a experimentação do uso do koji kin para quebrar o amido da mandioca — inspirando-me nos japoneses, ancestrais genéticos dos povos que teriam cruzado o estreito de Bering, segundo algumas teorias —, também busquei referências em experiências de transplantação religiosa, tal como a da Igreja Messiânica fez para introduzir seus cultos no Brasil, num processo que se chama transplantação.

Autores como Susumu Shimazono e Andrea Tomita explicam como se deu a adaptação de cultos e rituais religiosos em contextos culturais diferentes, utilizando o conceito de transplantação religiosa, desenvolvido por Martin Baumann para descrever a introdução do budismo na Alemanha.

De modo semelhante, nos anos 1950, ocorreu no Brasil um processo de transplantação da Igreja Messiânica Mundial, fundada por Mokiti Okada no Japão, para o contexto brasileiro. Essa migração espiritual envolveu não apenas mudanças de linguagem e rituais, mas também uma aproximação simbólica com aspectos da cultura local.

Curiosamente, há várias coincidências culturais entre os messiânicos e a espiritualidade tupi: um dos conceitos centrais da Igreja Messiânica, por exemplo, é o de que somos a soma de todos os nossos antepassados e que devemos fazer oferendas de alimentos e cantar para eles — ideia que também ressoa com a visão ameríndia de ancestralidade.

Um ambiente de reverência à Deusa Mani dentro de casa ou de uma unidade de produção Cauim, vemos a pintura com uma oração à Mani, o Ietamemuã no centro com um suporte para colocar as Maracas e suas oferendas.

Inspirado por esse paralelismo e rituais budistas como o sambo (altar de oferendas), decidi criar um rito adaptado ao contexto urbano atual. Como não é possível enterrar o maracá no solo das grandes cidades, desenvolvi uma peça simbólica que permite sua fixação dentro de casa — uma estrutura chamada Ietamemuã – uma abreviação de Ietamongaba Karamemuã, nome em tupi antigo para ‘altar de oferendas aos maracás’, inspirado na forma tradicional das oferendas feitas pelos caraíbas da época de Lery.

Em tupi antigo:

Ietamongaba significa "oferta" ou "oferenda";

Karamemuã designa uma "caixa" ou "receptáculo sagrado";

A exemplo de uso, a frase "Aîinhetamong Mani Rese" pode ser traduzida como "Façamos uma oferenda para a Grande Mani".

Esse rito, ainda que contemporâneo, busca respeitar a essência ancestral da prática, criando pontes entre o passado e o presente, entre o sagrado indígena e a vida urbana moderna — sem descaracterizar sua força espiritual.

---

E assim, aos poucos, rituais de celebração e respeito aos ancestrais vão surgindo nessa nova cultura que renasce. Não como uma cópia do passado, mas como um tributo vivo, sensível e consciente àquilo que nunca deixou de existir: o espírito do cauim.



Blemia Powered by Google

Google