Muitos produtos genuinamente brasileiros só ganham prestígio nacional depois de serem legitimados no exterior. Essa inversão de valores, em que o olhar estrangeiro é necessário para validar o que é nosso, ficou conhecida — informalmente — como “Efeito Havaianas”.
A analogia vem das tradicionais sandálias Havaianas, lançadas nos anos 60 e por muito tempo associadas às classes populares. Durante décadas, foram desprezadas por grande parte da elite brasileira. A reviravolta aconteceu quando passaram a ser usadas por estrangeiros descolados, aparecendo em editoriais de moda como na revista Wallpaper nos anos 1990. Só então, passaram a ser vistas como um ícone de estilo também no Brasil.
Esse fenômeno se repete em diversas categorias. O hidromel, por exemplo:
Há 4 anos tento consolidar a categoria por aqui, com resultuados pífios. Acredito que um dos principais motivos é a falta de uma referência estrangeira bacana – como a americana Superstition Meadery – que possa "legitimar" a categoria aos olhos do consumidor brasileiro. Sem esse aval externo, os produtos nacionais acabam estagnados, mesmo com qualidade e história.
Recentemente, ao apresentar o projeto do Cauim Tiakau, ouvi de um profissional experiente de marketing:
“Você precisa lançar esse produto primeiro na Europa, nos EUA ou no Japão. Aqui, vai levar muito tempo para pegar — se é que vai.”
É a velha lógica do Efeito Havaianas. O cauim, bebida ancestral tupi com profundo valor histórico, ambiental e cultural, continua marginalizado no próprio país. No século XVI, era a principal bebida do Brasil, hoje, praticamente desapareceu da mesa do brasileiro. Reverter esse cenário é um desafio — e exige, ironicamente, o reconhecimento internacional para resgatar o orgulho nacional.
Esse modelo de reposicionamento internacional como estratégia de valorização local foi colocado em prática com sucesso em 2004 pela Sagatiba, uma cachaça criada por Marcos de Moraes, filho do empresário Olacyr de Moraes. Marcos tinha uma visão clara: transformar a imagem da cachaça — muitas vezes vista como rústica e popular demais — em algo sofisticado, exportável e desejado por públicos cosmopolitas.
Ao invés de investir diretamente no Brasil, Moraes decidiu lançar a Sagatiba primeiro na Europa, mais especificamente em Londres, com o apoio de uma das maiores agências de publicidade do mundo: a Saatchi & Saatchi. O conceito por trás da campanha era simples e poderoso: apresentar a cachaça como uma bebida de alto padrão, com design minimalista e uma brasilidade elegante, digna de bares premium e coquetelarias modernas.
A estratégia funcionou. A marca rapidamente ganhou espaço em clubes, hotéis e bares badalados da Europa, tornando-se símbolo de autenticidade brasileira — só que chancelada pelo gosto europeu. E só depois disso começou a ser percebida de forma mais positiva também no Brasil, onde passou a disputar espaço com vodkas e whiskies nas prateleiras das casas noturnas e eventos de alto padrão.
A Campanha “Pure Spirit of Brazil”
Com um orçamento de £20 milhões (aproximadamente R$ 150 milhões na época), o desafio era claro: criar um novo imaginário para uma bebida brasileira sem cair nos clichês. Nada de samba, carnaval, futebol ou favela. O briefing era criar algo disruptivo, surpreendente, mas ainda autêntico.
Depois de ideias rejeitadas, a solução criativa foi ousada: um modelo encarnando o Cristo Redentor, porém vivo, em situações urbanas e irreverentes — jogando sinuca, indo para a balada, curtindo uma piscina, fazendo “crowd surfing”. Tudo isso com a assinatura “Pure Spirit of Brazil”.
Cool Abroad to be cool in Brasil
Essa campanha resume perfeitamente o “efeito Havaianas” que discutimos:
A Sagatiba, sob a liderança de Moraes, entendeu que a cachaça — embora brasileira — carregava estigmas locais. Investir primeiro na imagem internacional e aspiracional foi uma estratégia pensada para reposicionar o produto também para o público brasileiro depois.
Se Moraes tivesse investido o mesmo montante no Brasil, teria funcionado?
Muito provavelmente não.
A validação gringa ainda opera como chancela no imaginário da elite brasileira. Foi esse desejo de ser visto como algo internacional que ajudou a cachaça Sagatiba a se tornar uma marca global, abrindo caminho para ser depois absorvida pela Bacardi.
O branding internacional ofereceu à marca o pedigree necessário para vencer a resistência cultural interna, ainda fortemente marcada pela chamada síndrome de vira-lata — expressão cunhada por Nelson Rodrigues para descrever o complexo de inferioridade do brasileiro em relação ao que é nacional.
Outras Marcas Cool Abroad
Essa dinâmica não se limita a produtos como cachaça ou sandálias. Também se aplica à arte, à música e à moda. Um exemplo clássico é o do artista Romero Britto. Nascido em Pernambuco, Britto teve que sair do Brasil para ser valorizado. Seu trabalho explodiu primeiro em Miami e em galerias da Europa antes de ser reconhecido no seu próprio país. Hoje, é um dos artistas brasileiros mais conhecidos internacionalmente mas durante muito tempo foi visto com desconfiança por aqui, por conta de seu estilo pop e comercial de mais. Só depois de conquistar o “olhar estrangeiro” é que passou a ser tratado com o respeito que já tinha lá fora (e mesmo assim, muitas vezes aqui no Brasil as pessoas torcem o nariz para o seu trabalho).
Esse fenômeno também se repetiu com outras marcas brasileiras com a Melissa, conhecida marca de calçados de plástico da Grendene conquistou fashionistas de Nova York, Paris e Londres com colaborações de designers como Karl Lagerfeld, Vivienne Westwood e Jean-Paul Gaultier. Só então ganhou novo prestígio no Brasil, transformando-se de sandália infantil em objeto de desejo adulto.
Outro exemplo foia a Chilli Beans, a marca de óculos e acessórios investiu primeiro em lojas-conceito no exterior para criar uma imagem ousada e global — o que ajudou a consolidar sua presença como símbolo de lifestyle jovem também no Brasil.
Esse tipo de movimento revela uma verdade desconfortável: o brasileiro ainda precisa da validação externa para reconhecer o valor do que é seu.
E é exatamente esse o desafio que enfrento com o Cauim Tiakau. Uma bebida ritual, ancestral e brasileira até o osso, mas que talvez precise primeiro conquistar paladares em Tóquio, Copenhague ou São Francisco antes de ser levada a sério por aqui.
Hoje, ao pensar em projetos como o Cauim Tiakau, que resgata uma bebida ancestral brasileira com potencial transformador, é impossível ignorar esse fator: ser valorizado lá fora ainda é, para muitos produtos, a porta de entrada para o sucesso aqui dentro.
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